Em Qualquer Cidade de Minas Gerais

Em Qualquer Cidade de Minas Gerais

Sempre tive vontade de registrar o meu dia a dia.Na adolescência, babava de inveja , ao ver colegas que tinham um diário.Ali escreviam seus sonhos, as mágoas , o 1º beijo e tal...Tínhamos uma situação financeira e econômica muito instável e não havia a menor possibilidade de comprar um caderno bem bonito, especial e escrito na capa MEU DIARIO. E assim , a adolescência acabou, veio a vida adulta , a super adulta e enfim cheguei na 3ª idade sem nunca ter realizado esse sonho idiota para alguns , terapia para outros e para muitos como eu ,que ainda tenham a insistência e a teimosia em alimentar a criança existente em nós . Então veio a idéia de criar um blog em que pudesse registrar o cotidiano de uma senhora idosa , sem culpas ou medo do ridículo .Hoje é bem melhor porque a gente escreve para o vento, pra gente mesmo.Totalmente irresponsável e sem compromisso de agradar ou não.Simplesmente pelo prazer de falar do seu dia a dia vivido em qualquer cidade de Minas Gerais ou qualquer espaço físico vivenciado por mim.

sábado, 29 de janeiro de 2011

O ANJO MANOEL


O ANJO MANOEL

Numa noite na véspera de Natal, uma menina moça chorava compulsivamente.Estava encolhida, debaixo de uma escadaria de cimento.Ela estava bem longe da sua mãe e naquele momento, desejava ardentemente dormir na sua velha e conhecida cama Patente.Era muito forte o desejo de sentir as mãos maternas acariciando sua testa e se estendendo por seus cabelos.Em posição fetal, escondia sua cabeça que balançava com a força das suas emoções.Ao ouvir passos, se assustou e levantou o rosto.A iluminação do poste estava exatamente sobre a imagem de um homem muito e muito alto.A principio pensou ser uma aparição, aos poucos percebeu ser um belo homem de cabelos e olhos negros e um imenso bigode.Se sentiu mais tranquila quando ele perguntou: “ o que aconteceu? Por que chora tanto?” Ela contou o motivo e a impossibilidade de sair naquela noite.
Ele fez a seguinte proposta:¨daqui até onde está sua mãe,são mais ou menos 4 a 5 horas de carro.Se sairmos agora, você estará com ela lá pelas 5 horas da manhã e passará o Natal junto a sua mãe¨.
A menina moça subiu as escadas e pegou alguns pertences, desceu entrou no carro daquela aparente aparição e se foi com ele.Nunca o tinha visto.Mas ele inspirava tal confiança que parecia ser um velho conhecido. A menina moça não teve a menor dúvida em acompanhar aquele ser.
Durante o trajeto ele lhe mostrou retratos de dois filhos e um retrato maior dos seus pais que moravam na Espanha.A mãe era muito linda com uma mantilha sobre a cabeça.O pai era ele mesmo, tal a semelhança.
Segundo ele, o amor dos seus pais, se desenvolveu através das colheitas de uvas, onde um cantava Los Pioneros e o outro, em local bem distante respondia completando a canção.
Até ai, a comunicação era só através de olhares.Ambas as famílias eram muito rígidas e até chegar as vias de fato, só se comunicavam pelos olhos e pelas canções.Entre elas,Los Pioneros.(clássico da música popular espanhola)Se quiser conhecerKICLE AQUI.
Então, Manoel(era esse o seu nome),cantava lindamente a música principal dos pais e outras em tom de flamingo, bem alto e voz de tenor.Assim foi viagem deles.Puro encantamento e Manoel sempre cantando músicas em espanhol, da sua infância e de seus pais.Quando ele disse chegamos, a menina moça mal acreditou que tivessem já ocorrido 5 horas.Pra ela, eles viajaram apenas 1 hora.Disseram Feliz Natal um para o outro e, NUNCA MAIS SE VIRAM.
A menina moça o procurou como se procura uma agulha no palheiro.Ninguem tinha visto e nem sabia dele.No hotel que ele deu referencia onde iria ficar, ninguém o viu.Se evaporou.Ele a deixou em frente a casa da sua mãe.Perguntou se alguém a tinha visto chegar, disseram sim, mas sozinha.Ela insistiu, mas vc não me viu chegando num carro x acompanhada de um homem moreno de bigode? Não.Voce chegou sozinha.
A menina moça se convenceu de ter estado com um anjo.O anjo Manoel.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011




MINHA BISAVÓ BRASILINA, SIM SENHOR!

Tem um velho ditado sempre repetido por minha mãe, na tentativa de passar pra mim....”quem nasceu pra dois mil réis, nunca chega a um milhão”.Olha só que coisa mais predestinada, limitada e desestimulante...,isto era lembrado quando eu tava imaginando coisas impossíveis pra cabeça sofrida e acostumada a resignação da mamãe. Qualquer obstáculo era como uma espécie de aviso pra retornar à sua condição de resignada com o ¨destino¨.Havia no ar uma certa ameaça de castigo,se insistisse, ante obstáculos,pra ela, intransponíveis a nível mental.Segundo sua fala, tudo tinha que ter ação física.Trabalho pesado,sofrido e de preferência com sol escaldante na cabeça.Assim ela tinha sido criada. Plantando,colhendo e nas horas vagas, fazendo remendos, ou com o socador de pilão(espécie de liquidificador na roça de muitos anos atrás) nas mãos, fazendo grãos de milho, arroz e raízes se transformarem em alimentos, a serem consumidos pela imensa família.E mesmo assim, enquanto agia com o corpo sua mente imaginava algo melhor.Segundo ela, enquanto com a enxada na mão,ouvia da escola ,professora ensinando a ler para alunos e entre eles, meu tio e seu irmão gêmeo fraterno(aos homens era necessário aprender a ler e escrever), lágrimas escorriam de vontade de lá estar ,também aprendendo.Havia uma incoerência com o ditado que apregoava e o existente pra valer no seu interior.Já com 10 anos captei a repetição como uma espécie de lealdade para com sua família e reformulei o ditado como: “quem nasceu pra dois mil réis,pode sim,chegar a um milhão.”
Naquele tempo infantil da minha mãe,só ficaria livre do trabalho bruto quem estivesse pra morrer.Foi mais ou menos o caso dela, desde o surgimento de uma ferida na sua perna esquerda.A falta total de assistência médica mais um pouco de conformismo na base do¨num adianta lutar..¨, mais o tempo passando,aumentaram o tamanho da ferida a ponto de não poder mais andar.Ela se arrastava. Não foi mais pra roça e ficava em casa sempre com panos enrolados na perna , pra dar conta do almoço e lanche pra ser enviado para as lavouras.Dessa forma, lá vinha o velho ditado se afirmando...¨não adianta...nasci pra viver assim...,nunca vou sair dessa vida¨
A tal ferida quase alcançou de um lado ao outro da perna.Ela achava que perderia a perna quando os lados se encontrassem.Fico imaginando- a se arrastando, com dores, sem carinho,pois minha avó era muito rígida e poderia até achar que tal estado teria sido inventado por ela, pra não ficar trabalhando.A salvação veio da minha amada bisavó num momento triste da sua vida. Separou-se do meu bisavô por ele ter se encantado por outra mulher.Deve ter sido muito difícil enfrentar uma separação com quase 50 anos de casados.Tiveram 19 filhos.Ela juntou os seis filhos solteiros, disse adeus e foi morar com a filha mais velha, minha avó. Minha bisavó era parteira e entendia seu trabalho como missão, dom de Deus.Era inútil querer pagar por seus trabalhos.Se insistisse,ela tomava como ofensa.Além disso era quitandeira.Ou seja, era chamada pra fazer doces, assar leitoas e tudo para um casamento na roça.
Por quitandeira ela cobrava.As vezes ficava de uma à duas semanas em fazendas ou regiões mais afastadas, trabalhando dia e noite.Fazia doce de feijão, mamão,banana,figos,casca de laranjas, limão,goiabas e bolos e pães.Enchia tonéis de vários tipos de doces. Matava, limpava e assava pequenas leitoas,frangos e carnes de boi.Assim, conseguiu com sucesso, a sobrevivência dos seus filhos e ainda ajudava minha avó.
Com seus conhecimentos de ervas, emplastos e sei lá mais o que, curou a perna da minha mãe.Era a matriarca.Qualquer decisão teria que ter o seu aval.Quando minha mãe resolveu trabalhar na vila mais próxima e conheceu um italiano e engravidou do meu irmão,ela teve todo o apoio da minha bisavó ao recusar o pedido de casamento,quando ele foi falar com minha avó.Minha bisavó só perguntou pra minha mãe:¨ você quer se casar com ele?¨Minha mãe respondeu: “não”.Ela falou:”não haverá casamento”.Minha avó quase teve um enfarto cerebral.
Esta decisão levou minha mãe a trabalhar na roça numa disciplina mais rígida por quase 3 anos.Daí, o pároco de uma cidadezinha mais próxima e muito chegado a minha bisavó,devido aos remendos perfeitos e ajudas com a feitura de doces para ajudar a igreja,solicitou uma pessoa de confiança para
trabalhar na casa de uma família. Essa família estava encontrando muitas dificuldades com o pai idoso e viúvo a pouco tempo.
Minha bisavó não teve dúvidas.Indicou minha mãe.Não sei como aconteceu,talvez o medo de perder o emprego,já que havia uma grande aversão da minha mãe pelo viúvo idoso.E assim, ao se descobrir grávida fugiu pra Vitória, capital do ES.Ficou meu irmão pra trás com minha avó.
Então, nasci em Vitória com a ajuda da Maria Babisk,amiga e de origem polonesa que morava numa chácara em Paul.Ela era uma espécie de madrinha do romance da mamãe e o meu padrasto.Me lembro do grande amor fraternal da minha mãe pela Maria que já tinha um filho de nome Joel.Não gosto nem de imaginar o tanto de tempo sofrido, naquela época,com filha no colo,trabalhar pra manter a mim e a ela.
Foi aí que surgiu o meu padrasto.Ficou apaixonado e assumiu minha mãe comigo junto.Então,eu tinha contato assíduo com Maria já que estava constantemente no sobrado onde passamos a morar.Por isto me lembro tão bem dela.Principalmente no dia em que ouvi a porta da escada bater e fui ver quem era.Minha mãe veio correndo dizendo: “to aqui,venha Maria”, e ninguém apareceu.Minha mãe perguntou: “cadê a Maria?” “Ela tava me chamando...” devo ter respondido: “não sei, só ouvi a porta bater e vim ver quem era...” no outro dia, à noite veio a noticia: Maria tinha sido atropelada no passeio onde esperava um ônibus no Rio de Janeiro.Morreu na hora.Estavam indo parentes pra buscar o corpo.
Após três anos,mamãe se desentendeu com meu padrasto e foi até onde estavam seus familiares e entre eles o meu irmão.Viajamos de trem e em Colatina pegamos um ônibus para encontra-los.Após umas 5 horas de viagem chegamos ao nosso destino.Ficamos na casa de um Tio que já estava nos esperando.Como já estavam todos combinados,dormimos e no outro dia, chegaram minha avó,seu marido,meu irmão e a tia Judith.Eu com uma boneca de papelão do tamanho de um bêbê,com roupa de papel crepon.Meu irmão se escondia atrás da minha avó pra não abraçar mamãe.Dormimos e no outro dia...cade minha mãe?...Foi embora.Eu? Tive de acompanhar os parentes por quase um dia inteiro, a pé.Se sentia alguma coisa,não me lembro.Acompanhava calada as pessoas estranhas e tudo era novidade.Nunca tinha visto formigas. Quando via formigas grandes, parava pra ver e todos riam da minha ignorância.E assim era com tudo.
Ao chegar no nosso destino entramos em uma casa de tabuas com gretas entre as tabuas e de cara um fogão à lenha com bancos dos lados.Minha bisavó,pegou minha mão e me colocou sentada sobre um banco ao lado do fogão.Me entregou um prato de ágata, com feijão em caroços,um pedaço de polenta, arroz e um pedaço de carne.
Ao receber o alimento, ia pegando os caroços de feijão e empurrando pelas gretas das tabuas.Acho que a única a perceber foi minha bisavó que pegou uma faca e cortou bananas de um cacho pendurado no teto e colocou nas brasas do fogão á lenha. Pegou meu prato, descascou as bananas quentes e me devolveu o prato com bananas assadas nas brasas sem os outros alimentos.Comi tudo.Desde então,fui oficialmente adotada por ela e durante minha permanência com eles, nunca mais nos separamos. Até pra dormir, dormia no canto da sua cama. Quando ela era chamada para fazer algum parto e a pessoa que a chamava não tinha condições de mandar animal pra irmos á cavalo, seguíamos trilhas,as vezes, debaixo da lua cheia, ela na frente com seu embornal de apretechos de parto e eu atrás, seguindo-a. Quando minha mãe retornou pra me buscar, eu chorava tanto e gritava não querendo ir.Precisou dela me pegar no colo, em gritos e me colocar no colo da minha mãe pra que me resignasse ,por aquele momento de despedida e final de um ciclo.
Consegui segurar pedaços da história da minha bisavó.Sua mãe se chamava Francelina e fora criada com pessoas que lhe ensinaram culinária,fazer rendas e obediência.Ela era resultado da união de índio com branco. Seu marido se chamava Marcelino.Ele era mulato e tinha sido ou era feitor de escravos.Francelina, parece, sentia amor pra valer pelo filho da sua família protetora.Como tinha aprendido direitinho a cartilha da obediência, aos 13 anos se casou com o escolhido da família que não era o seu amor, pra evitar problemas futuros.A partir daí,levava a família muito a sério..Das suas filhas, somente a minha bisavó e outra irmã,aprenderam a arte de fazer doces e trazer crianças dos seus semelhantes ao mundo.
Dona Brasilina,minha bisavó, como era chamada, era o dinamismo personificado.Não gostava muito de falar mas vivia fazendo Hum... rum... rum... rum...rum melódico e baixinho, enquanto estivesse fazendo qualquer atividade.Uma lembrança que amo recordar é quando íamos tomar banho no rio.Ela tomava banho de combinação(peça intima utilizada por baixo de qualquer vestido.Era do mesmo tamanho do vestido ,só que de alças.).Usávamos sabão feito em casa.Ela sentava numa pedra e como eu era muito pequena, me punha numa pedra maior, atrás dela, pra ajudar a enrolar os longos cabelos que iam pra baixo da cintura.Adoro me lembrar disso.
Como também gosto de imagina-la, cuidando em total silencio, do meu bisavô que voltou alquebrado e doente para a família.Ela cuidava,dava banho,alimentava-o mas não respondia o que ele perguntava ou qualquer outra palavra era dirigida a ele.(Fiquei sabendo muito depois pelos parentes).Até que minha avó, chorando pediu: ¨mãe pelo amor de Deus perdoe o papai.Ele está agonizando e não consegue morrer esperando sua fala de perdão¨.Ela se levantou de onde estava, se dirigiu para o quarto onde estava meu bisavô.Todos a acompanharam e viram e ouviram: “ Vá em Paz.Você está perdoado.Eu o perdôo”.Isto dito olhos nos olhos e ele apertando sua mão.Ela se desvencilhou da mão dele, voltou pra onde estava sentada, fora do quarto.Ele se foi de madrugada.É isso ai vó, “quem nasceu pra dois mil réis pode sim, pode chegar não a um milhão, mas vários milhões.”
O meu carinho e amor pra você, onde quer que esteja.