UMA CERTA RUA DO COMÉRCIO
A Rua do Comércio
ficava localizada no centro de Vitória, capital do estado do Espirito
Santo, e se estendia por vários
quarteirões. Neles, sobrados quase idênticos, lado a lado, se instalavam
parecendo mais pessoas do que construções,
observando os terrenos vazios a sua frente.Nesses espaços vazios, vez
por outra eram ocupados por parques de diversões ou circos.Os sobrados dessa
rua além de serem quase iguais na sua construção, tinham também funções
semelhantes, ou seja, em cima residências com pequenas varandas e embaixo as
lojas ou escritórios.Nesse caso, a parte
de baixo de onde morávamos era toda destinada a negócios de exportação de café
e cacau.
O movimento
era muito intenso durante o dia com tantas carroças abarrotadas de sacas de
café puxadas e mantidas por animais sofridos e chicoteados pelos carroceiros. Eu
me encolhia toda ao ouvir o estalar dos
açoites raivosos nos lombos dos animais sem defesa, que davam como resposta a
obediência e resignação.
Naquele ano
de 1944, tinha eu 4 a 5 anos e assistia tudo da sacada verde do sobrado.Mesmo
sem um entendimento ainda definido, ficava incomodada com a situação dos animais.
Hoje fico imaginando como teria ficado bem contentinha se tivesse um dia,
chegado na sacada e visto o carroceiro no lugar do animal, amordaçado por um cabresto,puxando toda aquela carga e
levando chibatadas nas nádegas .
Sem levar
chicotadas de chicotes, mas dos olhares de quem os tivessem pagando, surgiam
então, os carregadores. Sempre muito apressados, quase correndo, na sua maioria
negros, descalços e de torço nú.Eles
descarregavam das carroças sob sol escaldante, sacas e mais sacas de café para o escritório ou vice versa e pareciam
indiferentes das marcas quase em sangue nos seus ombros suados, como também nem imaginavam da preciosa carga, ser talvez, responsável pela movimentação econômica e
financeira daquela rua e do Estado.
Quando o dia ia terminando dando inicio
ao anoitecer, as lojas e escritórios baixavam suas portas.Os movimentos iam
diminuindo até o ponto de só se ouvir algum trotar aqui e ali, de
cavalos,raríssimas buzinas de carros e os passos de alguém vindo e indo.Então toda a rua emudecia. e os sobrados trancavam as janelas das suas varandas, como pálpebras dos olhos se fechando para
descansar num grande sono.A ausência de altos edifícios e a pouca iluminação
naquela rua, punha em evidência o brilho das estrelas no céu.E era pra lá que
os meus olhos se dirigiam quando se esqueciam de mim na varanda verde do
sobrado.Esse olhar constante para o alto
só era desviado, no momento em que a luz
encantada de algum parque de diversões, se manifestava através de não
sei quantas lâmpadas coloridas formando um pisca- pisca fascinante.Nesse exato
momento, os auto falantes começavam a cumprir a sua missão de completar a
propaganda de chamada nas ruas. Então,emitiam ondas sonoras que iam se
infiltrando, preenchendo os sobrados, em forma de músicas até hoje presente no
meu imaginário de modo nítido e forte.Músicas e mais músicas até fechar o
parque, quebravam o tudo igual daquela rua.Era como se fossem raios de luz se
expandindo, penetrando cada vão das construções, dos quartos, e, mesmo já sendo
carregada, meio dormindo, mesmo assim, atingiam meus ouvidos como me embalando
pra dormir.Durante o tempo que ali permaneciam,os sons musicais alto e em bom
tom, dos sucessos da época, foram minhas canções de ninar.De vez por
outra, aos 74 anos, me pego cantando a
valsa Farolito e Será do cantor Carlos
Galhardo.
Qualquer
criança que assistisse, do inicio até a
noite de estréia,da sacada de qualquer sobrado, a evolução da montagem de um
circo ou parque de diversões, teria para sempre viva, a sua criança
interior.Era o meu caso.Durante dias e dias , acompanhava todo o movimento do
pessoal artista, o estender e pregar lonas e o sistema de iluminação, no caso
de ser um circo.Ou, se fosse um parque de diversões, a montagem da roda
gigante, do carrocel, as cadeirinhas de balanço que rodopiavam e as barracas de
jogos.
Passamos a morar no sobrado a partir do momento em que o meu padrasto
resolveu se unir a minha mâe.Isso lá pelos anos de 1942 e 1943.Ele era viúvo e
morava com seus dois filhos.Hélio de 15 ou 16 anos.César,mais ou menos 19 anos.O
Hélio era a figura típica do adolescente atual.Brincalhão, conversado e fazendo
força para se adaptar á rigidez e seriedade do pai e irmão mais velho.O Cesar
completava sua aparência de seriedade e responsabilidade com uso constante dos
óculos.O bedecia a risca as regras sociais e não deveria se sentir muito a
vontade com o comportamento do seu pai, trazendo uma mulher pra dormir no mesmo
quarto.Eu? Dormia em berço esplendido(era um grande berço mesmo), o sono dos
anjos, no mesmo quarto do meu padrasto com mamãe.Sempre me lembro do César com
uma cadeira na mão, insistindo para minha mãe(sempre recusava) se sentar ao meu
lado, à grande mesa nas principais refeições.Pra
ele, defensor dos bons costumes, uma mulher fazendo todo o serviço doméstico e
a noite dormindo no mesmo quarto do dono da casa,seria a dona da casa.E assim
ele a apresentava para quem chegasse.¨Essa é a mulher do meu pai.¨Minha mãe? Se
sentia constrangida e discretamente sempre ficava a margem de qualquer situação
que envolvesse pessoas estranhas.Não conseguia e nem queria deixar de pertencer
as suas origens de agricultora.Eles a admiravam pela transformação do imenso quintal. De feio e cheio de lixo
virou uma esplendorosa horta, com canteiros e covas organizados de verduras e
legumes lindo de se ver.O César dizia ter ela dedo verde e dom especial de
lidar com a terra.Daqui pra frente vou me referir ao César, com apelido
carinhoso nomeado pelo Hélio: “ O PRESIDENTE”.
Então, se
passasse do horário estipulado, ou algum comportamento inadequado, Hélio
chegava pé ante pé e me perguntava:¨o Presidente já chegou? Ele ta ai?¨Era
minha função responder com aceno de cabeça sim ou não.
O Presidente trabalhava e
estudava.Hélio só estudava no Colégio Salesiano.Sem dinheiro pra comprar o que
o irmão tinha,sapatos,ternos, e camisas, ele usava sem remorsos tudo do irmão,
sem ele saber.Quando o Presidente precisou dos novos sapatos, ainda na caixa e,
seus ternos mais importantes para um grande evento, constatou dos seus novos
sapatos estarem com ameaça de buracos de tanto uso.Seus ternos, sujos e
amarrotados.Chegou na sala de jantar, desesperado e bufando chamou minha
mãe.Quase gritando falou: “...onde ele está?Quero enfiar isto na cara
dele.”.Minha mãe, muda estava, calada ficou.Ele esperou pelo meu padrasto pra
se responsabilizar pelo prejuízo.Não me lembro no que deu.Só sei, se não me
falha a memória , do Hélio ter dormido na casa de um parente naquela noite.
O
primeiro Natal da minha existência foi preparado e alimentado pelo Hélio.Ele
punha um copo de água no vão da janela e falava solenemente: ¨Se você deixar de
chupar dedo e for boa menina, Papai Noel beberá a água e trará presentes.Se ele
não beber...nem adianta esperar...¨Não sei como ele fazia pra esvaziar o copo
sem eu perceber.Só sei da força feita pra não chupar meu polegar.E, ao
encontrar um presente ao lado do meu berço, em plena manhã de Natal, meu coração
disparou.Rasguei sofregamente o embrulho e dei de cara com uma grande e linda
boneca sorridente. O rosto, as mãos e os pés de louça e o corpo de pano.Deslumbrada
seria o termo certo para meu estado.Foi a minha 1ª boneca e segundo Hélio se
chamaria Xandoca.Logo depois do Natal fiquei com sarampo e o Hélio pintou a
Xandoca de pintinhas vermelhas em sinal de solidariedade.Muitas
saudades...saudades...muitas.Minhas primeiras noções sobre o Natal foram bem
positivas graças ao Hélio.Foram três natais durante a minha estadia naquela
rua.No segundo Natal ganhei um lindo bercinho com um bebe dentro.No terceiro
foi a glória, um pequeno piano que tocava.Tinha visto a filha do vizinho
tocando um.Quando perguntaram o que eu achava que o Ppai Noel traria...respondi
prontamente: ¨um piano igual ao da Emilia¨.Mesmo com os rituais e garantias do
Hélio do Papai Noel saber até dos pensamentos das crianças,fiquei ansiosa e
temerosa de ser esquecida.E assim ,lá pelo escuro da madrugada, acordei e meio sonolenta, passei a
mão onde estavam meus sapatos a espera, no lado da cama, para confirmar.Lá
estava ele.Toquei forte nas teclas.Confirmado.Virei para o outro lado e com
grande suspiro de satisfação continuei a dormir.No café da manhã,todos
comentavam terem sido acordados no meio da noite com o som do piano.E riam, e
riam muito.Nunca mais os meus natais foram os mesmos.Impossivel não me lembrar
com muita alegria e agradecimento, por ter vivido esse período “divisor de águas” naquela rua.É
como se eu passasse a existir a partir daí.Não tenho a menor lembrança infantil
do antes da Rua do Comércio.
UM IRMÃO DE NOME HÉLIO
Todas as manhãs, enquanto mamãe preparava a
farta mesa do café,o grande rádio(do tamanho de uma tv 29 atual), era ligado
para se saber noticias da guerra.Me lembro das propagandas nos entremeios das
noticias.Quase todas imitadas pelo Hélio e entre elas, a do azeite de nome
Maria.Vinha numa lata quadrada com a estampa de uma bela mulher...Então o
locutor batia na mesa com três toques e dizia:¨Maria sai da lata¨.Hélio batia
três toques na mesa do café e substituía o nome Maria pelo meu nome, o da
mamãe, meu padrasto e até do Presidente.Outra propaganda surgia com a voz de um
tenor de ópera cantando ¨ai...ai...ai que dor no fígado, tralalála la
...tralala lá...tralalalá...¨,aí vinha o nome do remédio para o fígado.Todos
ríamos muito.Dizem que eu até gargalhava com as imitações.Embora amenizada pelo
Hélio,foi uma época difícil, principalmente para os alemães e descendentes
residentes em Vitória.Presenciei, da sacada de onde morava, alemães serem
espancados e xingados por
multidões.Nesses momentos, o Hélio me arrastava da sacada, fechava todas as
janelas que davam pra rua.
No ano de
1945, no mês de abril, morre o Hitler.Eu tinha então quatro anos.Mas me lembro
muito bem o Hélio com uma teara de pano na cabeça, dançando e cantando num
grande desfile, no meio da rua onde morávamos.Parecia carnaval.A multidão fazia
o som com um pedaço de pau batendo sobre pandeiro, tamborim ou lata repetindo
sempre o mesmo refrão: ¨...morreu o Hitler...pam...pam...pam, morreu o
Hitler...pam...pam...pam...¨. Quando fazia o pam...pam...pam......, O Hélio levantava o tamburim ou lata, ou pandeiro,olhava pra
mim lá debaixo e continuava só que gritando o refrão MORREU O
HITLER...PAM...PAM...PAM...Sei da chamada de atenção do Presidente,mas nem
quero pensar em como foi.
Os
primeiros contatos com a arte do circo me foram passados pelo Hélio.Primeiro
porque o espaço era bem em frente ao sobrado e só precisava atravessar a rua,
e, segundo, acho eu, ele tentava ser gentil com minha mãe...(se é uma coisa que
terei de admirar e agradecer sempre, era
o carinho, educação e o respeito dos filhos do meu padrasto para com
minha mãe).O primeiro espetáculo assistimos na arquibancada e adorei.Surgiu uma
artista mirim com roupa colorida e brilhante fazendo manobras e piruetas sobre
uma tabua de madeira que por sua vez estava sobre um rolo também de madeira.Ao
chegar em casa quis imita-la e punha uma tabua sobre uma lata vazia de leite
Ninho e tentava me equilibrar sobre a tabua . mas a lata amassava e eu
caia.Quando o Hélio viu,me explicou da menina fazer aquilo desde muito cedo e
eu teria de me exercitar muito e não valeria a pena. Como também não valia a pena ficar tão
assustada com a morte do Sr. Filme.(Filme ,nome próprio mesmo).
Sr
Filme era amigo do meu padrasto e hospede constante do sobrado.A mesa do café ficava sempre posta a
sua espera,pois era o ultimo a se
levantar.Parece mesmo é que ele gostava de tomar o seu café matinal sozinho, ou
por outra, comigo.No momento em que mamãe servia o bule de café e leite, ele me
chamava pra sentar ao seu lado e conversava como se eu fosse adulta.Não
entendia sua fala mas gostava muito de ouvir o som da sua voz mansa e ondulada.Sempre
trazia presentes tais como mobília de madeira para bonecas, bercinho de bebe,
lápis coloridos,ferrinho de passar roupa,jogos de cubos então, era quase um por
dia. Mais tarde vim a saber que ele era esotérico e tinha perdido uma filha da
minha idade.Mas acho, que ninguém sabia era que ele tinha o dom da cura.Curou
minha mãe em vias de ser hospitalizada apenas dizendo:¨Deus está dentro da
senhora.Entre no seu quarto, cerre os olhos.¨O mesmo com a coluna do meu padrasto.
Estava na sacada assistindo o ensaio das escolas para os desfiles do dia 7 de setembro, quando
Sr, Filme falou da porta entreaberta do seu quarto: ¨vá lá embaixo correndo, no
escritório e chame seu padrasto¨Corri falei pra minha mãe que providenciou imediatamente
a presença do meu padrasto.Nada adiantou.Ele morreu.
Não entendia o tanto de gente.Não entendia ele em movimento
no café daquela mesma manhã e os seus últimos presentes: duas panelinhas com tampa.A pouco ele me chamava e agora tão
quieto deitado dentro do caixão dormindo no meio da sala.Ia toca-lo para que se
levantasse, veio então o Hélio depressa, pegou na minha mão e disse:¨ ölhe como
ele está dormindo.Sabe onde ele vai acordar?¨ Retornou comigo no inicio da
escada que dava para o quintal e mandou que eu olhasse para o horizonte .¨Ta
vendo lá em cima no céu?¨ É lá que ele vai acordar.¨
Houve certa preocupação por parte da mamãe, padrasto e Hélio
com meu comportamento inexplicavel de só
querer ficar sentada atrás das portas durante o velório.A noite, a
demora pra dormir levou o Hélio a tentar me distrair fazendo figuras com as
mãos, imitando animais em movimento.Mandava eu olhar pra sombra na parede e aí
surgiam cachorros, gatos e outros.Muito tempo mais tarde eu fazia a mesma coisa
com meu filho quando pequeno.Ele repetiu o mesmo com meus netos em
criança.
Na manhã seguinte perguntaram como eu estava e disse:¨sonhei
que o Hélio estava com o rosto todo riscado assim (mostrava no meu rosto linhas
verticais e horizontais), e assim.De todos os riscos saia muito sangue¨.Então
ele pegou papel e com lápis riscou uma
bola, 2 olhos e boca.Quadriculou a bola e perguntou: “assim?”Eu disse sim, só
que de cada risco saia muito sangue.Foi uma espécie de premonição com anos e
anos de antecedência, já que foi exatamente assim que o encontraram com sua
esposa e dois filhos em um grave acidente de carro.Sómente no caso dele ficou
cruzamentos de linhas infiltradas pelos vidros do carro.Toda a família fez a
grande viagem juntos.
Que você Hélio e toda a sua família, onde quer que estejam
tenham muita PAZ e a você em especial, meu grande e muito obrigada.
Quem sabe a gente não se encontra por aí,em uma outra Rua do
Comércio qualquer, localizada, sabe Deus,em outra dimensão qualquer eficamos
sabendo os motivos que os levaram a se unir e conviver com uma criança com
idade de 3 a 4 anos por quase 5 anos? QUEM SABE?! PAZ PARA TODOS.